Cada enlutado vivencia de maneira singular a experiência de luto! Sempre repasso esta frase, pois creio que um dia as pessoas vão se tornar mais conscientes e empáticas com as pessoas enlutadas. Aqui relato algumas nuances sobre o luto concreto por morte, e sobre o viver e o morrer para o enlutado.
O “como” eu respondo ao meu processo de luto, diz respeito à unicidade que foi construída durante aquele vínculo afetivo que se rompe com a morte. E de verdade “verdadeira”, o vínculo não se rompe com a morte! Quem fica sente a sensação de rompimento do vínculo por um tempo, como se algo não existisse mais. Ficamos presos pela dor somente na materialidade da relação! Penso que a dor ofusca o vínculo de amor que existe e nunca acaba. A pessoa fica perdida, confusa, assim como os enlutados ficam perdidos diante da vida com a morte. Mas isso não significa que o vínculo acabou, ele apenas fica abatido até que a luz comece a se acender novamente.
Se formos pensar bem, quando amamos e nos relacionamos com alguém que é importante e significativo em nossas vidas e esta pessoa morre, é natural que sintamos tristeza, angústia, que nossas vidas fiquem bagunçadas… Fica conflituoso dentro de nós, nossa alma sente a separação, a dor da perda, da ruptura e de tudo que se perde com a partida aquela pessoa. Aliás, além da vida de quem amamos, muitas coisas se perdem com a partida daquela pessoa. O luto é muito mais amplo do que a maioria percebe ou tem informação.
Tudo, absolutamente tudo, que envolve a vida, algum dia, mais cedo ou mais tarde, vai chegar ao fim, vai morrer. É a experiência humana! Tudo morre para que algo novo nasça. Essa é a mais pura verdade que sabemos desde que atingimos a consciência de que estamos vivos. Mas não conseguimos ter esse olhar para a morte e para o luto com naturalidade, como algo inevitável e próprio da vida!
E por que então não falamos sobre a Morte e o Morrer, por que o luto é tão silenciado?
Porque temos no Brasil uma característica moral imposta pela sociedade de modo geral, de que “temos que superar o luto e seguir em frente”! Um mundo pós-moderno propõe esconder sentimentos, emoções e vivências tristes, numa “ditadura da felicidade”, onde é mais do que pregado nas mídias sociais que a vida deve ser vivida na mais pura alegria.
Acontece que isso é praticamente impossível. A vida real também se apresenta em sua dualidade e, por alguns períodos de tempo, principalmente nos casos de rompimentos por morte, de tristeza. Não conseguimos permanecer todo o tempo felizes e contentes. Consequentemente, quando estamos enlutados, tristes e angustiados, sentimos que estamos fora do padrão, que algo de errado está “acontecendo conosco”, que não somos normas ou boas o suficiente, ou que temos que ser fortes.
Assim, tentamos anular a verdade, escondemos a morte, e a realidade do enlutado passa a ser um problema. É a verdadeira “conspiração do silêncio”!
Como não entrar em crise e sofrimento quando perdemos alguém que amamos e que significa muito para nós? Quando aquela relação é muito significativa em nossas vidas, quando temos, mesmo, muita convivência?
Ainda não alcançamos essa clareza, essa evolução espiritual num nível coletivo, de comemorar com alegria a passagem de alguém que morre. Nosso coração sangra, sente profundamente a dor da separação. Dói. Entretanto, fica vergonhoso sentir dor e passar por períodos de sofrimento numa sociedade que tem a característica de evitar o sofrimento. Não nos permitimos viver intensamente. Não podemos entrar em contato com profundidade nas relações, nas emoções, no amor ou na dor.
E dentro da maior crise da experiência humana, não temos tempo para parar e sofrer. A dor deve ser evitada a qualquer custo, a morte não é aceitável, nos afastamos da informação e de nossos sentimentos reais e seguimos a rotina, para que a morte se torne técnica, e o luto, condenável. Qualquer preparo para a morte em formação, seria bizarro. E #vidaquesegue
Mas, se formos rever a história, nem sempre foi assim. Na idade média o luto era vivido naturalmente, os mortos eram velados em casa, as crianças estavam presentes e brincavam correndo pelo quintal onde os parentes e amigos permaneciam para desfrutar dos últimos momentos com aquela pessoa importante que se foi. O ritual da morte era vivido de acordo com as leis da natureza.
Assim, o ponto que não quer calar é que a morte existe, o luto acontece, e o que fazer, então, com toda a dor proveniente dele?
O rótulo negativo pesa na elaboração do luto, a sociedade diz que não tem espaço para o enlutado, pondo resistência e muitos julgamentos, e o enlutado reage a essa vivência com um silêncio que adoece, com um afastamento que desgasta, e com o que possui de recursos internos.
Quando falamos em vivenciar perdas, enfrentar e elaborar a morte, falamos também da forma como construímos nossas raízes internas, dos modelos de relações que aprendemos com nossos pais durante a primeira e a segunda infância, ou do que carregamos de outras gerações. Nosso estilo de apego está diretamente ligado aos nossos vínculos familiares e como podem agir como complicadores nesta recuperação. Muitas vezes, é necessário e extremamente importante para essa nova adaptação à vida que voltemos às nossas origens familiares, que possamos explorar as nossas crenças e lealdades advindas do sistema familiar, que tentemos apreender como sentimos nossa confiança, como nossas cicatrizes existenciais abalam nosso mundo de significados. Ajustar o mundo com a morte exige de nós novas percepções da vida, de nossa família, exige novos papéis, mudanças no próprio self. O desafio é encontrar, nessa transição, novas funções e aprendizados que nos levam a evoluir na qualidade de nossos vínculos em outro tom de fluidez, nos caminhos das incertezas, sobre a vida e sobre a morte.
Quando organizamos nossas relações, com os vivos e com os mortos, subimos mais um degrau para REgenerar nossos corações doloridos. A vida nunca mais será a mesma sem a presença de quem morreu. E é respeitando com humildade cada experiência de perda que cada um constrói um novo caminho para seguir adiante e se abrir para a nova realidade. É possível reencontrar o amor e se preencher dele, mesmo sem a presença física de alguém valioso que um dia esteve entre nós. Viver em companhia da finitude nos traz um aliado salutar, podemos enfrentar esta dificuldade e crescer.