Eu já escrevi e reescrevi minha história de vida por inúmeras vezes. Tantas delas com letras trêmulas e melancólicas, outras, aflitas e amarguradas, até por vezes, adversas e desesperadas. Devagar e sempre, fui construindo um diário de bordo de sentimentos flutuantes, que posso denominar de “Diário da Evolução da Dor”. Aonde minha dor chegou?
Os primeiros seis meses foram contados com muito sofrimento e luto. Um vazio interno sem fim. Doía tudo, o corpo estava machucado, mas o que mais sofria era a alma. Tudo praticamente era a dor intensa de todas aquelas perdas e da culpa de estar viva.
Acontecimentos que me levaram para um lugar que, antes de tudo, não poderia sequer imaginar. Quando escrevo estas “mal” traçadas linhas, meu amor, cabe aquele velho e arcaico duplo sentido que rege nossos dias: a ambiguidade da vida e da morte.
Compreensível que todos nós saibamos que nossas vidas tanto podem caminhar para um BEM ESTAR PRESENTE, ou para acontecimentos nefastos que nos levam a ter problemas de todos os níveis: doenças, estresse, ansiedade, medos e mais medos daquilo que nem sabemos ao certo, repetições de acidentes, divórcios, fracassos profissionais e financeiros, e por aí afora se segue uma vasta lista sombria.
Portanto, temos a chance e as infinitas possibilidades de escolher para que lado queremos e devemos prosseguir. Fica bastante óbvio que podemos escolher, mas as coisas se tornam mais complexas quando vamos colocar nossas escolhas em prática. Na maioria das vezes queremos “estar bem”, e permanecer felizes e saudáveis, mas não conseguimos alcançar esta tão “sonhada” façanha da vida terrena. Parece que não temos tanto poder de escolha quanto pretendemos.
Comigo não foi diferente, como qualquer pessoa comum, que vive ou sobrevive as intemperanças da vida… Em 2010 sofri um acidente automobilístico. O que houve naquela fatídica madrugada de uma sexta feira aparentemente normal e feliz de uma viagem em família?
O que era para ser normal e feliz, virou minha maior tormenta, creio que nada anormal para muitas pessoas que sofrem e experimentam o CAOS da tragédia em suas vidas. Eu tive esse desprazer! Digo desprazer porque não é nada fácil vivenciar na pele, ao vivo e a cores, um trauma dessa magnitude. Mas muitos por aí afora vivem e sobre-vivem a tal desalento.
Bem, dói bastante para soltar do coração todos os traumas e os problemas que enfrentamos, não é mesmo? Desde criança vivenciei repetidos acidentes de carro na minha família. Ouvia quase que corriqueiramente minha mãe dizer: “Quando você era bebê nós estávamos indo para Floripa e quase morremos na estrada. Sofremos um acidente tão grave que nem sei como estamos aqui.” E assim vai…
O detalhe, que não é tão mínimo assim, é que eu não tinha noção de como aqueles dizeres poderiam se concretizar um dia. Ou pior, que lugar era aquele que eu estava caminhando sem saber. Estavam todos no carro. Meu pai, minha mãe, minha filha de seis anos, um sobrinho, e eu. Morreram todos, sobramos eu e o sobrinho por aqui. Foi colisão frontal com um caminhão gigante! E a partir daí, tudo parecia gigante aos meus olhos, menos a vida que eu não enxergava mais.
Um dos meus maiores conflitos foi: estávamos totalmente certos no código de lei de trânsito brasileiro, mas o que adiantaria? Resolveria algo? Culpabilizar o motorista “causador” do trágico “fim” da minha família?
Depois de me debater e espernear com o que eu acreditava que era uma “injustiça”, encontrei esta resposta no “NÃO”. Não adiantaria absolutamente nada, não mudaria absolutamente nada, não encontraria nenhum viés de resolução. E eu tinha que lidar com isso, um barulho ensurdecedor de carriola enferrujada na minha cabeça. Mas era duro demais pra mim, então eu não aceitava a minha própria realidade.
O suporte para lidar com o luto e a carga emocional intensa que eu vivia como mãe da Victoria e filha dos meus pais, ou ainda o meu possível processo simbólico de NÃO TER MAIS o papel de mãe e de filha, me deixou à deriva.
Eu me lembro bem de que ninguém “dava conta” de mim. Estavam todos perdidos, meu esposo, o restante dos familiares, os amigos, cada um com a sua dor. As ajudas vieram de um jeito ou de outro, em tentativas de me acalentar. Mas agora posso relatar que cada dia um bloqueio se instalava para que eu não tivesse prospecção de futuro. Nada mais fazia sentido! E, a bem da verdade? Ninguém realmente ajudava, atrapalhavam, todos!
Pensar no futuro me retratava uma espécie de traição com eles que morreram, era como se eu não tivesse mais o direito de viver…
Um suspiro, e um ano se passou. Movida pela tentativa desesperada do meu esposo de me salvar, fiz tratamento e engravidei de trigêmeos. Não tem como deixar de incluir a vida neste contexto de mais três vidas. Passei a deixar bem guardado o meu luto, “debaixo do tapete”, e segui com os próximos meses da gestação.
Eles nasceram, três corações voltaram a bater no meu peito. Talvez tenha sido aquela “sobrevivente da guerra” daquele acidente, lembra? Fato é que mais uma vez ela (ou eu) encontrava-se com a morte.
Um dos meus filhos que acabara de nascer pegou uma bactéria na UTI neonatal e lá vamos nós para mais uma etapa da ambiguidade da vida. Ou, de novo, seria a morte?
Foram meses, anos que se sucederam com meu pequeno sofrendo em hospitais, UTIs, cirurgias, tratamentos sem fim. O medo era de tudo, a iminência da morte era implacável. Meus dias eram divididos em cuidar dos dois filhos que estavam saudáveis em casa e correr até a UTI neonatal para acompanhar, com o coração quase que sem perspectiva, a decisão final de algo Maior.
O “pensar sobre o futuro” entra novamente em vigor. Alguns anos se passaram até que meu filho, agora uma criança de 5 anos, estivesse curado de suas intercorrências e vivo. A família voltava a se formar, era diferente, tudo diferente, mas era possível viver e reconstruir significados.
Talvez neste momento da história, vocês leitores pensem que nada mais poderia suceder de “ruim” por aqui, ou pela vida e morte real que conto agora. Pois é. Eu também achava isso. E me parecia, naquela época, que eu estava imune às coisas ruins, imune à morte que permeia a vida. Que arrogância a minha.
Outro acidente aparece para sacudir ainda mais toda esta trajetória de insucesso. Desta vez foi o meu marido quem morreu.
Mais um ano de escuridão. Ou estava tudo tão claro que eu não podia ver?
Finalmente, esta é a parte que me cabe reescrever. Nesta contação de vários capítulos da real história, desta vez com letras aliviadas e claras, a parte que diz muito sobre o que estava por trás disso tudo.
Eu reconheci que precisava parar e rever toda minha vida e todo meu sistema familiar, todas as minhas relações. Eu simplesmente pensei: não tenho responsabilidade, realmente, por essa situação catastrófica em que me encontro?
Todos aqueles acontecimentos diziam respeito a quem? Por que cargas d’água estavam acontecendo tantos sintomas? Não estariam esses acontecimentos me alertando de que algo estivesse “dando errado”? O efeito estava no CAOS que minha vida tinha se tornado.
E como uma sirene, ressoava forte algo maior. Não há como explicar em palavras, mas algo precisava curar, eu precisava assumir as minhas responsabilidades por inteiro. As minhas razões vitimizadas eram pertinentes, mas não me levavam a lugar algum, afinal.
Existiram pessoas que foram cruciais para que eu pudesse acender, e despertar tantas chamas que estiveram, há tanto tempo, apagadas dentro de mim. Aqueles anjos que são enviados quando escolhemos o caminho de nos movimentar para uma ação movida pelo BEM de todos.
Os anjos são aquelas pessoas que podemos contar, elas estão sempre dispostas a realmente estar conosco de corpo, alma e coração. Minha irmã primogênita me falou sobre física quântica, fui pesquisar e ali entrei num mundo totalmente diferente do que conhecia. Estudei muito, e descobri que havia algo mais do que apenas aquilo que tocamos e enxergamos com os olhos.
Depois, amigos me perguntaram se eu conhecia as constelações familiares, me apresentaram esta abordagem que todos os dias inunda meu coração. Participei de um workshop e fiquei totalmente encantada. Tive uma conversa séria comigo mesma, e assumi que precisava e iria pedir ajuda.
Dei início a minha jornada na abordagem sistêmica, sem ter a menor noção de onde isso iria chegar. Comecei a ler todos os livros de Bert Hellinger e isso foi se expandindo dentro e fora de mim. Iniciei, então, uma pós-graduação nesta área. Treinamentos, inúmeros cursos, mentorias, e os resultados escaparam do meu controle. Que bom!
Eu descobri algo importante, que vem para REconstruir um novo sentido na minha vida, na vida de todos os meus familiares, e que poderia trazer algo que ajudaria mais e mais pessoas. Jamais imaginei, mas segui em frente. Cada experiência, cada vivência foi única e surreal, não consigo dizer nada, parece insuficiente, tudo tão vivenciado e sentido internamente, tão profundo!
Me deparei com a minha vida despida de qualquer julgamento. Aquela engrenagem que corrobora para a vida funcionar mais leve estava ali. Eu simplesmente estava precisando aprender a ser humilde, grata, precisava de cuidados, ser untada de todo Amor Maior de meus pais, reconhecer as peças faltantes no meu sistema, encontrar a minha posição na família, tudo precisava de polimento, ser visto e honrado.
Perceber que meu auto sacrifício por aqueles que morreram não trazia paz alguma, só aumentava a dor e o sofrimento. Assim, comecei a entrar em sintonia com a força e a coragem para transformar um destino duro em algo bom para mais pessoas. Percebi a fundo minha missão, e voltei a seguir com tudo e com todos reconciliados: novos revitalizantes horizontes começaram ressurgir!
Foram alguns bons anos para que a vida voltasse a florescer, os aprendizados contínuos e o propósito transbordaram, para que eu pudesse enfim transmitir renovação aos meus filhos, ordens que nos fazem evoluir a cada dia. Abriram-se novos espaços com esta visão de um sistema UNO, em que tudo cabe, que se abre para vivermos inteiros, mesmo sem a presença física daqueles que amamos tanto, e que se foram antes de nós.
A consciência expande e a busca por mais não para: saber a direção, ter clareza da realidade, do seu lugar, a responsabilidade de fazer valer a pena para todos que pagaram alto preço para estarmos aqui, e finalmente desfrutar da abundância, era tudo o que eu precisava, e tanto mais do que eu poderia imaginar.
Eu consegui sentir na alma, com os aprendizados da constelação familiar e com a inteligência sistêmica, que a única saída é ter uma postura humilde que me permita concordar com a minha realidade, com a minha vida, com a graça que recebi de estar aqui presente, dia após dia, pelo tempo que durar. Concordar com a minha morte quando chegar a minha vez, concordar com meu destino difícil. Esta visão me permitiu honrar tudo que foi plantado até aqui pelos meus ancestrais, do jeitinho que foi, sem mudar nada. E a força vibra e nos leva a REconstruir a VIDA como algo bom e com a benção de todos.
Poder dar as mãos e direcionamento, hoje, para muitas pessoas, neste caminho que passei um dia, me traz mais força e gratidão, alegria, conserva minha vida, minha dignidade e minha liberdade. Me mostra que é possível com a ciência do amor.