“Liberdade” é uma palavra expressiva, e abre muitas discussões filosóficas. Eu escolhi uma etimologia grega ~”eleutheria”, liberdade de movimento, a possibilidade do corpo para se movimentar sem qualquer restrição externa, a ausência de limitações físicas. Acontece que não estamos presos apenas às respostas materiais, temos sim um corpo material e estamos nele para um movimento corrente, mas isso não é tudo o que há. Podemos fazer nossas escolhas, mas será que sempre escolhemos o que realmente queremos?
Sempre temos a opção de pelo menos duas escolhas, mas esta liberdade vem carregada da não-opção de escolhermos as nossas raízes. A nossa capacidade de tomar decisões por conta própria, agir e nos comportar está diretamente ligada à vinculação ao nosso sistema familiar. Não temos a liberdade de escolher a nossa origem, onde nascemos, os nossos pais, avós, a nossa árvore genealógica ou o solo em que nascemos. Somos os frutos desse meio, do que absorvemos na infância. Somos os nossos pais, um pouquinho de nossos avós, outro pouquinho de nossos bisavós e carregamos essas essências todas de vinculação com nossos antepassados, mesmo que conscientemente não percebamos.
Isso tem um efeito comportamental expressivo em nossas vidas. Fomos nutridos pelos nossos pais, somos não só o DNA com características físicas de mamãe e papai, adquirimos nossos hábitos com a vivência junto deles, e muitas das vezes mesmo quando não convivemos com eles, carregamos traços comportamentais deles. Um exemplo disso são as crianças adotadas que permanecem vinculadas a seus pais naturais e vice-versa, sem ao menos tê-los conhecido.
Quando entendemos a liberdade como uma necessidade de “estar livre de algo”, quando sentimos esta liberdade de algo, de alguém, quando queremos nos libertar de…estamos falando de algo interno, e quando nos percebemos internamente, num nível de alma, espírito, ou inconsciente, o percurso para alcançar essa “tal liberdade” não é tão fácil assim, muito menos temos tão sonhado arbítrio de estarmos livres de muitas questões e crenças aprendidas na primeira e segunda infância, ou mesmo questões transgeracionais que nos ensinam comportamentos incondicionais. Cada um de nós conhece gente que pensava ter se desprendido de seus pais, até que percebeu como se tornou semelhante a eles, não é mesmo?
Então podemos perceber que existe uma vinculação entre pessoas de um sistema de relacionamento sem que nós as criemos propositalmente com nossas comunicações e intervenções. Repetimos inevitavelmente, sobre o solo de estruturas familiares predeterminadas que são fruto da transmissão da vida, de suas condições e da atuação de acontecimentos marcados pelo destino através das gerações.
Fui descobrir tais ligações muito tempo cronológico depois de ter passado por inúmeros acidentes de carro desde que era bebê com meus pais, somente quando quase todos os meus familiares já tinham morrido sucessão nefasta de eventos, uma REpetição incessante de acidentes no meu sistema familiar.
Primeiramente, não conseguia me ver livre destes eventos, mesmo porque não os reconhecia como minha realidade. Fato é que, quanto mais excluímos tais eventos nefastos que acontecem em nossos destinos familiares sobre os quais não temos o controle e simplesmente “acontecem com a gente”, o chamado “destino”, mais nos mantemos presos a eles. Esses acidentes que acontecem por obra do destino e nos causam danos hediondos num profundo conflito, me fizeram sofrer e ter dificuldades de encontrar uma solução por anos a fio, vivenciando um luto prolongado por múltiplas perdas. Tudo era resultante da minha não aceitação da compreensão desta realidade. A morte não encerra as imagens que nós vivos carregamos conosco. Ninguém é separado de sua família pela morte. Meu papai, minha mamãe, minha filha e meu esposo que morreram perderam suas vidas, mas nunca perdem seu pertencimento à família, seus lugares de amor em nossos corações jamais serão apagados.
Se por uma fatalidade alguém causou a morte de minha família, criou-se um vínculo existencial em que os sentimentos de raiva, ódio, vingança, não me proporcionaram a liberdade de viver. E pior de tudo é quando a culpa por ter ficado viva nos consome na relação custo/benefício de ter sobrevivido às custas de tantas mortes.
Então vivenciei sentimentos e emoções em todos os níveis, que me abatiam em uma dor absurda de não querer mais viver. No meu inconsciente seria mais fácil não viver, era como estar viva, mas não conseguir desfrutar da vida. O luto costuma ser a maior crise da experiência humana.
Esse impacto da morte e a falta de liberdade como opção para querer continuar a viver para quem ficou, é de um sentimento de impotência tamanha. Passamos um período vivendo a dor causada pelo luto. Eu transitei por este vale escuro por quase 10 anos na tentativa de ficar livre deste destino. E mesmo no esforço que fiz para me livrar desta dura sina, a simples necessidade de me libertar, apagar tudo, não pensar neles, me mantinha ligada a este passado numa dimensão de sofrimento.
Com o tempo descobri que deveria me permitir sentir conscientemente estes sentimentos de dor, deixar doer e convidar todos aqueles sentimentos dolorosos para um REconhecimento, um “bate papo” na calada da noite, onde me sentia mais vazia, triste e vingativa. Um certo alívio começou aparecer. Acolhimento! Auto acolhimento, à princípio.
Mesmo não sabendo ainda como agir e como REagir a como era a minha vida antes da ruptura, quase tudo permanecia desconhecido. Praticamente, eu andava pelos caminhos da vida, ligada no automático, deixando a vida, ou melhor, a morte me levar. Estava totalmente vulnerável.
A grande dificuldade foi a tentativa de ofuscar meu destino. Eu não conseguia olhar e entrar em contato com ele sem querer mudá-lo e excluí-lo. Percebi quando iniciei minha jornada de solução que não tinha autonomia suficiente para resolver minha questão se continuasse a querer mudar aquele destino imutável.
Neste ponto sucederam muitos e muitos confrontos com a minha realidade. Me escorriam lágrimas de sangre, como costumo dizer hoje. Foi muito difícil, achei que seria impossível olhar para aquela cena traumática do acidente com minha filha morta em meus braços, e não sentir raiva, não exigir que o motorista do caminhão que causou o acidente fosse punido de alguma forma, e pelas minhas mãos. Eu queria que ele de fato sofresse a minha dor, como uma forma de compensação pelo dano que me causou. Eram muitas e muitas exigências…
E assim, não me libertava nunca de sentir tanta dor! Muitas tentativas foram falidas, eu tive que insistir e desistir por muitas vezes e maneiras diferentes.
Alguns feixes de luz me permitiram abandonar a ilusão de que eu poderia liberar um caminho para a arte de REviver sem me REconciliar com o meu destino, concordar com o que aconteceu, renunciar a uma justiça que eu considerava adequada, permitir que eles partissem e tivessem paz, liberar meu trauma e começar ver uma ação libertadora e uma despedida que nunca tinha sido possível.
Claro que todo esse REcomeço teve um tempo de maturação para eu chegar neste lugar, além de abrir um espaço para eu ficar, e agora tomar meu caminho por conta própria sem mais ser o artesão da minha desgraça. Então, encarar uma felicidade não merecida em face a culpa enredada à morte de todos eles era apavorante. Mas começou a ser possível.
Sorte imerecida! O desafio de me transformar era, por vezes, pesado demais pra mim. Algumas vezes preferia abrir mão da felicidade ou da vida, a chegar a tal ponto de suportar a consciência pesada de aceitar a vida como uma graça.Imagine só!
Mas as forças vibram e nos levam a REconstruir paulatinamente, depois de decidido seguir por uma cura baseada na inclusão do destino da forma como ele é, e tudo a seguir seria baseado no amor esclarecido e respeitoso, humilde.
Hoje, busco me REorganizar, mesmo sem a presença física deles. Meu mundo REaparece em outra formatação, e o novo é avistado como algo BOM!
REstaurei minhas crenças com várias modificações, meus significados se transformaram, REvisei como eu vivia, REformulei a vida! Acabou o desespero, os conflitos sumiram pelo preenchimento da minha capacidade de REencontrar o amor de cada um deles, que permanecia vivo no meu coração. Foi lindo, foi doido, mas aos poucos este amor preencheu e REacendeu, como uma vela que mantenho acesa dentro de mim, na minha alma.
REconhecer que o amor não acaba com a morte me fez ser uma pessoa diferente. Expandiu os meus conceitos de vida que estavam inflexíveis em uma consciência do bem e do mal, certo e errado. Deixei pra trás. Deixei o julgamento. É importante vigiar e orar todo tempo para não nos assolar. É um alívio viver sem julgar. Deixar de ser o juiz da nossa própria vida e da vida alheia é libertador! Eu arrisco dizer que é o nosso maior desafio.
O ato de me tornar humilde e o assentimento à minha própria vida e ao meu destino, tal como foi predeterminado, e aos limites que me foram impostos juntamente das possibilidades que me foram dadas, no que haja de pesado e de leve no caminho, seja o que for, quando experimentei, foi liberador. Eu REencontrei a arte de REviver! Quem diria?
Diria que a liberdade está na concordância da vida real, tal qual ela se mostra, desta inclusão e deste espaço interno que pode ser construído por todos nós. Da vida e da morte. Temos limites internos, resistências, medos, inseguranças, eles nunca vão embora. Mas o que fazer com eles?
Travamos uma batalha todos os dias, para vencê-los de novo todos os dias, para não nos incapacitar e não nos matar. A pior vida é a vida não vivida! Precisamos, muitas vezes, encarar a morte de frente para levantar a cabeça e enfrentar a REsistência à vida, como bem disse Steven Pressfield.
Paralisei a vida por um tempo, vivenciei o luto, me reencontrei com a morte, chateada com ela por várias vezes, até que descobri nela uma aliada. Ela me REfez, e hoje me sinto bem com ela. Todos os dias olho para a minha morte, e vejo o quanto posso REalizar hoje, antes que ela me encontre. Sei que um dia ela vai chegar, como chegou para tantas pessoas que amo, mas seguir com a vida num novo sentido, a esta nova experiência, me abre todas as manhãs a esta nova realidade.
Uma nova visão sobre si, sobre o outro, sobre o mundo, sobre a vida e sobre a morte! As perdas são sim um fim, tudo morre e acaba um dia, para que outras configurações se abram para a vida. É possível dar continuidade para nossos vínculos de amor, com aquelas pessoas que amamos, mesmo que elas não estejam mais presencialmente ao nosso lado.
Me deparar com a morte e as perdas que se sucederam a ela, me sacudiu, me fez ouvir meu coração, me fez transbordar minha vocação. Eu já sabia qual era, mas não conseguia percebê-la. Corrija-me se estiver errada, mas veja como aqui já se percebe na finitude da vida algo de evolutivo e menos prejudicial. Ela sempre nos ensina algo. Perceba o que você quer aprender com ela, com a natureza da morte, e que pode te levar a algo superior.
A morte não tem nada pessoal com você, não sabe quem você é, e também não quer saber! Descobri isso a duras penas. É uma força da natureza, necessária para o REnascer dos ciclos, existe todo um tempo para o REnovar. A forma como a alimentamos, vai ditar se ela pode ser um degrau que nos conduz para algo maior ou a nossa própria destruição.
O sucesso do novo após o período de luto, que deve ser respeitado individualmente, é enfrentado com resistência por você e por quem te acompanha. Sempre tentamos nos sabotar com, “não devo fazer isso ou aquilo”, porque socialmente existem regras bem determinadas para o luto e o pós luto. A verdade é que quando a linha de chegada está próxima, o perigo inconsciente ou consciente sempre aparece para nos derrotar. Sempre esteja alerta para isso.
Atravessamos um oceano árduo sozinhos com a dor que o luto nos remete, sentimos impotência de não retomar mais a vida que ficou tão bagunçada, sofremos e somos moralmente julgados pela sociedade, não importando como agimos. Fique alerta e siga, mesmo oscilante, até a fase de integração, até onde você quer chegar.
Encerro este texto dizendo mais sobre liberdade e a arte de REviver depois do luto. Estar vivo não significa estar respirando, a vida é muito mais do que isso, é para ser honrada como um presente, e isso não significa que não podemos ficar tristes, com raiva, chateados, enlutados. Nós podemos sim, e construímos a partir disso, de acordo com o nosso melhor, respeitando sempre o que cada ser escolhe para si.
Viver o presente como um presente nos dá liberdade e boas dádivas, mesmo que cada um tenha um histórico de vida. Acredito, sem dúvida nenhuma, na capacidade humana e na força que todos nós possuímos. Ninguém é mais ou menos, somos apenas seres humanos diferentes uns dos outros, cada um com sua beleza e seus devaneios, assim como a morte faz parte da vida.
Sim, perdemos amigos e familiares, ficamos tristes, enlutados, voltamos a ficar alegres e contentes outra vez, ou talvez não mais. A vida não é um vídeo game para chegar a VITória de vencer o luto, mas chegamos a algum lugar, ninguém sai daqui, nem chega, como uma folha em branco. Encontraremos lugares onde nunca pensamos ir, e é geralmente onde se encontra a nossa grandeza. Ajustamos o nosso mundo, o nosso viver, com as pessoas que morreram, e seguimos com elas.
Eu os levo comigo em minha vida mesmo que estejam mortos. Agora todos nós estamos em paz, livres da dor da separação carnal, então me preencho do amor deles dedicando o meu “servir à vida” a eles, aos outros, tudo feito por todas estas mãos, a serviço do amor e da vida, enquanto nos for permitido viver. Os vivos ficam, cada um toma seu caminho, mas ao mesmo tempo conectados e livres no amor.